quinta-feira, 5 de fevereiro de 2009

As cidades invisíveis

"Não se sabe se Kublai Khan acredita em tudo o que diz Marco Polo quando este lhe descreve as cidades visitadas em suas missões diplomáticas, mas o imperador dos tártaros certamente continua a ouvir o jovem veneziano com maior curiosidade e atenção do que a qualquer outro de seus enviados ou exploradores."

Assim o livro é iniciado, indicando a sua trama principal: as histórias contadas por Marco Polo à Kublai Khan - conquistador mongol para quem Marco serviu por muitos anos - sobre como seriam as cidades do seu gigantesco império. Se as cidades descritas pelo viajante veneziano realmente existiam, ou se todos os relatos eram visões diferentes de uma mesma cidade (talvez Veneza, sua cidade natal), não saberemos certamente. E não mudaria muito. O dilema vivido pelo grande Kublai vai permanecer indecifrado. O que vale de toda a experiência é participar de uma viagem à lugares mágicos através de descrições embebidas de um simbolismo intrigante e reflexivo, que nos remete à percepção e à complexidade da mente humana. Inúmeros são os trechos que poderia citar aqui como referência, mas a descrição bem sucinta de uma das cidades me deixou extasiado:

"O que distingue Argia das outras cidades é que no lugar de ar existe terra. As ruas são completamente aterradas, os quartos são cheios de argila até o teto, sobre as escadas pousam outras escadas em negativo, sobre os telhados das casas premem camadas de terreno rochoso como céus enevoados. Não sabemos se os habitantes podem andar pela cidade alargando as galerias das minhocas e as fendas em que se insinuam as raízes: a umidade abate os corpos e tira toda a sua força; convém permanecerem parados e deitados de tão escuro.

De Argia, daqui de cima, não se vê nada; há quem diga: 'Está lá embaixo' e é preciso acreditar; os lugares são desertos. À noite, encostando o ouvido no solo, às vezes se ouve uma porta que bate."

A habilidade de Calvino no que remete à fantasia é genial. Marco Polo, no livro, consegue encantar o grande rei dos tártaros e a nós leitores. E não só as histórias contadas por Marco Polo sobre as cidades visitadas nos impressiona. Os diálogos do mercador veneziano com o grande imperador são repletos de discussões subjetivas e profundas, que nos deixa constantemente presos ao livro:

Marco Polo à Kublai Khan:

" - Os outros lugares são espelhos em negativo. O viajante reconhece o pouco que é seu descobrindo o muito que não teve e não terá."

"Eu falo, falo - diz Marco -, mas quem me ouve retém somente as palavras que deseja... Quem comanda a narração não é a voz: é o ouvido."

"O inferno dos vivos não é algo que será; se existe, é aquele que já está aqui, o inferno no qual vivemos todos os dias, que formamos estando juntos. Existem duas maneiras de não sofrer. A primeira é fácil para a maioria das pessoas: aceitar o inferno e tornar-se parte deste até o ponto de deixar de percebê-lo. A segunda é arriscada e exige atenção e aprendizagem contínuas: tentar saber reconhecer quem e o que, no meio do inferno, não é inferno, e preservá-lo, e abrir espaço."

Os nomes femininos para as cidades também nos deixa intrigado. Diomira, Isidora, Dorotéia, Zaíra, Anastácia e mais algumas dezenas de "mulheres" povoam o livro. Talvez homenagens ou comparações, mas a incerteza não tira ou acrescenta brilho ao enredo. Também não acredito que poderia ser mais brilhante. "As cidades invisíveis" (1972), de Ítalo Calvino, fica como mais uma indicação de um ótimo livro.

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